segunda-feira, 23 de novembro de 2009

ANGÉLICA DO MESSIAS

Papai veio para Angélica em 1958, instalando-se perto do rio Ivinhema, em terras do Dr. Renê Neder, onde o senhor Ovídio José de Souza, um prospero comerciante, vindo do estado de São Paulo, colocou uma “venda” de secos e molhados, papai assumiu como gerente geral. A maioria das pessoas do lugar era paraguaia que ali trabalhava em derrubadas de matas para formação de pastos e cultivo de lavouras. Para as crianças os paraguaios eram personagens assustadoras devido ao modo que se vestiam, como viviam embrenhados nas matas, para se protegerem de insetos, cobras e outros bichos eles utilizavam pneus velhos, cortando-os e fazendo de botas e envolvendo com tiras de pano até altura da coxa; pareciam múmias da cintura para baixo. Eles bebiam muito e quando não tinha bebida alcoólica compravam todo estoque de álcool da nossa venda.
Foi um período muito difícil, no início não tinha médico para cuidar da saúde das pessoas, nessa época meu pai foi farmacêutico e médico ao mesmo tempo. As pessoas chegavam com malária, papai os medicavam com certos comprimidos que eram infalíveis, eles eram colocados em camas improvisadas, às vezes ficavam ali até uma semana, após estarem curados, meu pai cobrava apenas o custo dos medicamentos. Além da malária, apareciam pessoas com enormes abscessos nas pernas e nos braços, papai esterilizava lâmina de barbear - na época muito conhecida por “Gillette” – ou canivetes e cortava o tumor, em seguida fazia os curativos. Isso não significa que ele era corajoso, mas sim, por ter muita pena dessas pessoas, normalmente muito pobres, não tinham recursos para irem a um centro maior para serem medicadas.
Ficamos neste local mais ou menos dois anos, em seguida mudamos para um pouco mais adiante, num lote logo depois da fazenda do Dr. Renê, ali, o senhor Ovídio instalou novamente sua venda de “secos e molhados”, meu pai continuou como gerente, nesse local havia também uma barbearia e uma pequena escola, e ficou muito conhecido como “Bolichão”.
Ficamos no Bolichão, aproximadamente, por dois anos, foi quando papai deixou de trabalhar para o senhor Ovídio, e foi trabalhar com o senhor José Maria - um português que tinha uma fazenda naquelas imediações.
Este novo local ficava uns cinco quilômetros depois do Bolichão. Foi ali que passei a morar com meus pais, pois, até então, eu só vinha nas férias escolares. Foi quando interrompi os estudos, tendo concluído a quarta série ginasial. Neste novo lugar ficamos mais ou menos um ano, quando, finalmente, mudamos para Angélica, ali papai continuou no mesmo ramo, agora por conta própria. No início foi logo na entrada de Angélica, antes denominada “Vila dos Sapos”. Neste período eu estava com quinze anos e fui lecionar na primeira escola de Angélica.
Algum tempo depois, meu pai instalou-se comercialmente mais para o centro da cidade, desta vez já com o Bar Sorveteria e Restaurante (hoje de propriedade da família Terenciane).
Além de comerciante meu pai foi, na mesma época, “Juiz de Paz”, e o era no sentido mais amplo da palavra, pois era procurado por casais até para solução de conflitos conjugais.
Papai freqüentou apenas alguns meses de banco escolares, mas, tinha tamanho conhecimento, uma cultura tão elevada que só encontrei em grandes intelectuais que conheci. Ele gostava muito de ler, estava sempre procurando se manter informado e buscar novos conhecimentos, para isso assinava as revistas “O Cruzeiro”, “Seleção”, “Fatos e Fotos” entre outras.
Meu pai foi um grande poeta, tinha no coração o dom de traduzir para o papel os mais belos sentimentos, com expressões verdadeiras e puras. Tinha uma sensibilidade profunda, e, Angélica tinha um lugar especial no seu coração, prova disso está em seu Hino a Angélica, onde ele cita que “por onde ele andou não encontrou lugar igual ao seu cantinho”. Além das poesias ele escrevia crônicas para um jornal de Dourados.
Meu pai vibrava com tudo que se relacionava com Angélica, recordo-me quando, em 1974, ele ligou para mim dando duas grandes novidades: a instalação do posto telefônico e a chegada dos primeiros postes de luz, ele estava radiante, parecia criança quando ganha um presente.
Mesmo com sua doença, papai nunca deixou se abater, jamais reclamou, pelo contrário, ele sempre dava força, fazia piadas da sua situação, dizendo: Cada vez que vou a São Paulo tiram um rim, depois um pulmão, do jeito que vai vou acabar ficando oco. Percebendo que estávamos entristecidos ele completava - Fiquem tranqüilos, praga ruim geada não mata - em seguida dava um belo sorriso. Comenta-se, até hoje, entre a família, um gesto muito peculiar que papai fazia, ao iniciar um caso ou acontecimento, ele costumava “arregaçar” uma manga da camisa, em seguida fazia o mesmo com a outra (detalhe, ele só usava camisas de manga comprida), assim começava:
- Numa ocasião... - Dai pra frente era conversa para mais de horas, concluía dizendo - E afirmo, pergunte a quem quiser! - Como era gostoso conversar com ele!
É, papai, o senhor foi uma pessoa digna de admiração! Até hoje se comenta em nossa casa, quando ele vinha de São Paulo, já enfraquecido pela doença, ao atravessar a ponte do rio Paraná (Maurílio Joupert), papai se transformava, ficava radiante. O sorriso e o ânimo tomavam conta dele como num passe de mágica. Minha mãe sempre comentava que, quando ele estava na cama do hospital, em São Paulo, muitas vezes notou-o olhando pela janela do quarto, tinha o pensamento longe dali, quando ela perguntava em que ele estava pensando percebia que estava com olhos cheios de lágrimas, em seguida com a voz embargada, completava:
- Eu queria ser um passarinho, sair voando e só parar em Angélica, lá que eu gostaria de estar, bem perto dos meus amigos e da minha terra querida!
Meu pai falava com o maior orgulho que a água de Angélica, era a melhor do mundo.
Recordo-me no ano de 1978, quando ele foi para São Paulo pela última vez, teve que ir de ambulância, ao chegar ao rio Ivinhema, pediu para o motorista parar, apanhou um pouco d’água e bebeu com muito prazer - era uma despedida, pois, doze dias depois, papai voltou para sua querida Angélica dentro de um caixão, agora ficaria para sempre naquela terra que tanto amou.
Acredito que até o fim dos meus dias, todas às vezes em que vir um belo pôr-do-sol ou belas flores do campo, vou me lembrar do meu pai, pois cenas como estas não passavam diante dos seus olhos sem um brilho especial ou sem uma exclamação de admiração. Papai era sensibilidade pura!
Numa ocasião, depois que papai havia falecido, estávamos vindo para Angélica, e, ao passarmos pela estrada de terra, aquela que passa sobre a ponte do rio Ivinhema, suas laterais estavam floridas, uma visão linda para se contemplar! Era primavera; meu marido parou o carro, apanhou galhos e mais galhos daquelas flores, era realmente impressionante, quase não tinham folhas, somente flores amarelas, com isso encheu o porta-malas do carro, perguntei o porquê daquela atitude, ele não me respondeu nada, também não insisti. Ao chegarmos em Angélica, achei estranho, pois ele não tomou o caminho normal para se chegar ao centro da cidade até a casa da minha mãe, estranhei, mas fiquei calada, só esperando para ver o que ele ia fazer, para minha surpresa fomos parar lá no cemitério, fomos ao túmulo do meu pai, onde entendi o seu gesto, cobrindo-o com os galhos de flores, emocionado, disse:
- É sogro... trouxe flores do campo, já que não podes ir até lá para vê-las, elas vieram até aqui!